Educação Infantil

A utilização da documentação pedagógica na Educação Infantil a partir dos conceitos da BNCC

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Mariana Silva e Andréia Oliveira, coordenadoras pedagógicas da Educação Infantil

O termo documentação pedagógica refere-se a um conjunto de ferramentas que permitem acompanhar e interpretar sistematicamente os processos educativos, que mescla processo e produto, conteúdo e forma, teoria e prática, buscando coerência sobre o trabalho do educador e oferecendo um testemunho ético, político, pedagógico e cultural sobre as crianças, os adultos e o processo educativo. Na Educação Infantil, a documentação como abordagem de acompanhamento e avaliação da aprendizagem é citada desde aproximadamente 2010 em diferentes documentos nacionais, como as Diretrizes e os Parâmetros Curriculares Nacionais, e ganhou mais destaque com a homologação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

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Segundo Beatriz Ferraz, especialista em Educação Infantil e membro do Conselho Consultivo do Movimento pela Base, a inspiração para o trabalho com a documentação pedagógica nas escolas chega ao Brasil através da experiência italiana da rede de Reggio Emilia, região considerada uma referência nessa etapa de ensino por trazer o conceito da criança como protagonista de seu processo de aprendizagem. “Reggio Emilia começou a desenhar seu modelo educacional no pós guerra, quando buscou uma abordagem diferente do período anterior e que pudesse dialogar com a inteligência das crianças e com seu potencial. A ideia de documentar intencionalmente o processo surge como meio de conseguir mostrar para todos, não só para quem trabalha com pedagogia, o quanto as crianças são inteligentes e aprendem muito nesse período da vida, abrindo espaço para garantir seus direitos e lutar por uma educação de qualidade”, explica.

O que diferencia a documentação pedagógica de um simples registro coletado durante as atividades na Educação Infantil é que ela pode ser usada para repensar as ações e o planejamento do trabalho com intencionalidade. “A documentação é mais elaborada do que um monte de registros soltos, porque exige, além dos registros em si, uma reflexão a partir deles e uma organização estética para comunicar o processo. Isso ainda é uma novidade para muitas escolas. Os registros dos professores costumam ser subjetivos, enquanto o objetivo da documentação é falar por si, com um olhar específico para a escolha de cada imagem ou texto que a compõe, sendo o mais objetiva possível no momento de revelar essa aprendizagem”.

Entenda a função da documentação pedagógica

Segundo Beatriz Ferraz, a documentação pedagógica tem como função apoiar os professores e as crianças a construir uma memória do que aconteceu na aula, permitindo que haja interpretação, análise e possibilidade de reconstrução. “Se o professor retoma um determinado tema com a turma tendo auxílio de uma foto ou uma seleção de frases coletadas durante a atividade, ele ajuda a manter a narrativa do processo de aprendizagem para a criança”.

Ela diz ainda que o documento pode ser uma memória coletiva da escola, com todos os projetos e atividades, ou uma memória de percursos de aprendizagem de uma turma ou de uma criança específica, permitindo a interpretação pela equipe gestora e pelos pares. “A documentação apoia as crianças, o professor e permite dar visibilidade para as famílias sobre como e o que as crianças aprendem. Ela deve ser realizada pensando nesse coletivo, pois a documentação é apenas uma etapa, a outra parte envolve a interpretação do que foi coletado junto a um interlocutor. Também por isso ela é muito indicada para processos formativos, especialmente entre pares”.

Para que serve a documentação pedagógica:

Do ponto de vista das crianças: ela oferece oportunidades de contemplar o que a criança realiza; de se engajar, ser mais curiosa, interessada e confiante; participar com autoria e protagonismo de seu processo de aprendizagem – na medida em que se envolve, confrontar suas ideias e busca formas de responder a objetivos e questões intencionalmente colocadas pelo professor. Com a documentação em mãos, a criança consegue resgatar suas ideias e confrontá-las, apoiada pelo docente.

Do ponto de vista dos professores: oferece oportunidade de observar, analisar, interpretar, reconstruir, relançar, de conhecer a cultura da infância e buscar coerência entre os princípios e a prática pedagógica. Apoiar análises e hipóteses interpretativas para a tomada de decisão, seja ao continuar uma experiência específica ou encontrar novas estratégias de apoio à aprendizagem.

Para que tenha lugar de destaque dentro da rede de ensino, os professores precisam ser valorizados na produção de suas documentações pedagógicas e, segundo a especialista, uma forma disso acontecer é encontrar sentido nesse processo. “Quando os gestores, os demais professores e também as famílias compreendem o processo de aprendizagem da criança, essa interlocução acontece e o professor percebe que o esforço em documentar e refletir sobre ele contribui para o bem comum. O principal papel do coordenador e das redes de ensino é encontrar intencionalidade na documentação solicitada aos professores, pois não dá para documentar tudo e nem qualquer coisa, é preciso ter um motivo”, defende,

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Documentação pedagógica na rede de ensino: a experiência de São José dos Campos (SP)

Com 114 escolas, aproximadamente 2.800 professores e 33 mil estudantes na Educação Infantil, a rede municipal de ensino de São José dos Campos, na Grande São Paulo, é um exemplo com relação ao destaque dado à documentação pedagógica no processo de elaboração de seu atual currículo.

Segundo as Coordenadoras Pedagógicas da Educação Infantil, Mariana Silva e Andreia Oliveira, no trabalho desenvolvido pela rede a documentação pedagógica tem diferentes funções principais: serve para o professor reestruturar a própria prática, para comunicar as aprendizagens para a comunidade e para a criança refletir sobre processo e construção. “O trabalho de comunicar já era muito forte através do registro, mas agora estamos ampliando esse conceito do papel da documentação pedagógica pensando em toda a organização do cotidiano e como ela apoia o planejamento do professor”, destaca Mariana. 

Esse trabalho começou em 2018 com a criação do novo currículo da rede. Em 2019, foi iniciado um movimento de transposição para a prática com o grupo de professores, contudo, as expectativas e possibilidades foram repensadas com a pandemia. “De certo modo, foi um ganho para a gente, porque nos obrigou a usar os recursos tecnológicos e outras mídias, o que ampliou as possibilidades de documentação”, afirma Andreia. 

Nesse sentido, ela diz que o maior papel da documentação com uso da tecnologia foi a comunicação com as famílias, principalmente quando as escolas não estavam recebendo as crianças de forma presencial. “Refletimos muito sobre como levar propostas que as crianças desenvolvessem em casa e criando mecanismos de guardar essas memórias, com o que vinha da família e que poderia compor as evidências de aprendizagem. A documentação teve um papel muito grande de guardar evidências de participação das crianças e das famílias”.

A coordenadora diz ainda que a tecnologia ajudou a pensar o modo de documentar, com uso de recursos interativos como murais digitais, e-books e pequenos vídeos, que continuam a ser compartilhados nas unidades tanto para a formação dos professores quanto para a comunicação com as famílias. “Observamos que os professores se identificam com essa linguagem e levam para sua prática”.

Em São José dos Campos, a documentação também é abordada nos momentos de formação coletiva. “A rede está em processo de implementação do currículo e pensamos sobre o quanto a observação, a escuta e a documentação precisam fazer parte do cotidiano do professor, porque a interpretação desse registro, seja por meio fotográfico, pequenas notas ou um diário de bordo é o que vai dar subsídio para fazer um bom planejamento”.

A documentação é organizada no horário de trabalho, em duas das seis horas aula semanais voltadas para o planejamento individual, no qual os professores decidem as atividades e documentos que irão coletar. “Além disso, sugerimos que seja reservado um tempo do horário coletivo de trabalho mensal para interpretação dessa documentação e compartilhamento de boas práticas no grupo. No início do debate sobre o currículo, esse incentivo representou um ganho para as escolas e elas mantêm a prática ainda hoje”, aponta Mariana. 

Os professores usam uma pasta online compartilhada para organizar e revisitar sua documentação, selecionando o que é significativo para  mostrar para toda a escola e também para as famílias. “São ferramentas que se constituíram na pandemia, mas que tem potencializado nossas necessidades de organização e planejamento”, destaca Andreia.

Ela diz ainda que isso facilita pensar na continuidade do processo educativo, desconstruindo o conceito de atividade isolada, e caracterizando as necessidades de cada grupo. “Mais importante hoje para o grupo é trazer isso não como uma etapa, mas sim como uma essência. Sem ter esse olhar para a documentação pedagógica, o docente não vai conseguir organizar nada da rotina, tudo está entrelaçado”.

Segundo as coordenadoras, atualmente a rede planeja aprofundar ainda mais o projeto de investigação potencializado pela documentação pedagógica. “Nosso objetivo é retomar e qualificar esse processo no planejamento e nas ações que o grupo vivenciou para alcançar essas aprendizagens, pensando no porquê e para que documentar. Precisamos ter muito cuidado com isso, porque a escolha de cada ferramenta depende desse objetivo e do grupo de crianças. Portanto, mais do que pensar nas ferramentas e recursos para documentar, é preciso pensar na intenção pedagógica do professor no contexto em que ele está inserido”, conclui Mariana.

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Exemplos práticos de documentação pedagógica

Segundo Beatriz Ferraz, o processo de documentação não pode se resumir à coleta de registros, mas sim oferecer ideias potenciais e perguntas interessantes que gerem investigações e permitam construir as aprendizagens necessárias para a Educação Infantil. Sendo assim, no planejamento, o professor precisa se preparar para documentar e selecionar perguntas que possam apoiar a escuta dele ao longo da atividade. “Não basta tirar um monte de fotos sem entender por que está fazendo isso”, alerta, e completa: “No planejamento, é preciso definir os campos de experiências que serão trabalhados na proposta com intencionalidade e promover o desenvolvimento de uma aprendizagem relacionado aos objetivos e ao desenvolvimento. Além disso, ele precisa pensar na maneira de fazer a escuta e como vai documentar seus objetivos”.

Veja a seguir alguns exemplos de ferramentas que, uma vez reunidas com processo de interpretação e análise, podem ser contempladas em documentações pedagógicas:

  • Pequenas narrativas de histórias de aprendizagem das crianças gravadas em vídeo ou áudio;
  • Notas de conversas ou tabelas de dados que revelam o processo de aprendizagem;
  • Anotações simples das aprendizagens, seja a legenda de uma foto ou a coleta de objetos que resultam da produção das crianças;
  • Anotações de imagens e gravações de vídeos diversos;
  • Checklist personalizado sobre o que observar em uma atividade;
  • Reflexões pessoais sobre as crianças, os familiares, os pais, os parceiros;
  • Reflexões técnicas sobre o tema de uma pesquisa proposta na aula, que apoia o professor a justificar suas decisões e a conectar teoria e prática.

Beatriz completa afirmando que cabe ao professor e a seus pares refletir sobre a frequência dessa documentação e interpretação dos pontos coletados, usando o material para dar continuidade ao próprio planejamento. 

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