O aprendizado de geografia tem sido mais inovador para os alunos do 9º ano do Ensino Fundamental da Escola Municipal Lídia Angélica, em Belo Horizonte (MG). Conduzido pela professora e atualmente Referência de Diversidade da Diretoria Regional de Educação da Pampulha, da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte, Aline Neves Rodrigues Alves, o projeto envolveu um intercâmbio cultural virtual que levou sua turma a conhecer estudantes de Angola e, ao mesmo tempo, vivenciar a educação para as relações étnico-raciais em suas diversas formas.

O projeto, que foi batizado de Raízes Brasil Angola, aconteceu durante as aulas online no período da pandemia, e repercute até hoje na vida de Aline, que já foi contemplada com o Prêmio Educar para a Equidade Racial e de Gênero de 2022 e também reconhecida em sua rede de ensino e em reuniões no Ministério da Educação.

A possibilidade de diálogo com diferentes componentes curriculares, a expansão cultural e o foco no antirracismo são os principais diferenciais do projeto, que agora tem inspirado outros educadores a colocar em suas práticas os princípios da educação para as relações étnico-raciais.

Raízes Brasil-Angola

Segundo Aline, o projeto faz parte de uma sequência de práticas pedagógicas realizadas em sala de aula e fortalecidas junto às trocas de experiências de professores e pesquisadores dos Núcleos de Estudos sobre Relações Étnico-Raciais da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte, então co-coordenados pela Gerência das Relações Étnico-Raciais, que integra a Diretoria de Educação Inclusiva e Diversidade Étnico-Racial da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte. “Essa rede tem origem com pessoas que participavam dos movimentos sociais negros da cidade e da região metropolitana que, atuando na educação, passam a pressionar para que o currículo seja respeitoso com o pertencimento desses grupos”, conta.

Os encontros acontecem periodicamente nas nove regionais que contemplam a capital mineira e partem de momentos centralizados e descentralizados que culminam em seminários para tratar das demandas dos professores, das escolas e dos alunos de cada região. “Não são todos os educadores que participam desses encontros, mas os núcleos fortalecem o que vemos nos projetos de educação para as relações étnico-raciais”.

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Durante a pandemia, a educadora muniu-se da rede de apoio conquistada no núcleo e também da metodologia de projetos para desenvolver um trabalho que cativasse o interesse dos estudantes no cenário online. “A gente estava com ensino remoto emergencial em curso. Não era fácil articular com outros professores, mas foi possível. Eu contei com a ajuda de dois profissionais: a professora de química Danilsa Elisa Sorte Quicaxiamo, do Instituto Politécnico Edik Ramon, de Luanda, Angola, que havia feito intercâmbio no Brasil, e do professor de artes Jarbas Mateus de Souza Antonio, da Escola Integrada, de Belo Horizonte. Ambos atuaram para que a gente colocasse nossas turmas em diálogo, proporcionando o que a BNCC indica como intercâmbio com a comunidade. Ao todo, foram reunidas quatro turmas de 9º ano do Ensino Fundamental”.

A parceria, conta Aline, permitiu que os três professores expandissem suas áreas de conhecimento e criassem um projeto que reuniu referências de autores brasileiros e africanos. “O objetivo foi que os alunos investigassem coletivamente os hábitos alimentares e agrícolas, a influência do grupo etnolinguístico bantu na língua portuguesa, a tradição na globalização, as culturas religiosas e os movimentos sociais negros em ocorrência em seus países. A partir dessas investigações, os alunos realizaram atividades de apresentação dos resultados, como uma ação da metodologia de sala de aula invertida, cuja centralidade são os sujeitos e suas produções, cabendo ao professor mediar o processo de aprendizagem”. 

Após as apresentações, foi realizado o ‘Sarau território afro-literário’, na qual os alunos, em grupos, fizeram leitura de biografias, poemas, exposição de máscaras, desenhos e instrumentos musicais. Além das aulas, oficinas e um sarau virtual, houve orientações em grupos de trabalho, no contraturno, além do uso de plataforma virtual para atividades e materiais, bem como de aplicativos de comunicação e redes sociais para divulgação das atividades para comunidade externa.

Considerando o distanciamento social, os educadores também investiram em iniciativas para valorizar os aspectos sensoriais do trabalho, em momentos nos quais os alunos puderam utilizar olfato, paladar, visão, tato e audição em suas pesquisas. “A gente trabalhou com diversos elementos durante o processo de aprendizagem. Tivemos momentos de dança, por exemplo, ou momentos de pegar algum objeto ou alimento em casa, contar sobre sua história, sentir o cheiro e explicar como o cheiro é importante para aprender. Esses exercícios ajudaram a contextualizar o fato de que os africanos chegaram ao Brasil absolutamente sem nada, sem materialidade, mas com suas emoções e seus sentidos. E tudo isso é reconstruído aqui no Brasil. Então, hábitos alimentares que temos hoje mostram muitas conexões com Angola”, relata.

Aline acredita que, com o projeto, os alunos vivenciaram não apenas um intercâmbio virtual, mas também puderam criar uma comunidade científica de pesquisa cultural. “Nosso projeto pretendeu ter uma dimensão que não era só do local, mas era do local para o global. E em Angola eles também vivenciaram essa experiência, mostrando aos colegas brasileiros que seu país também é dividido em várias províncias, que por sua vez são divididas por etnias, e puderam ver que não dá para falar sobre hábitos alimentares de Angola, mas sim da realidade de cada província, assim como no Brasil não podemos falar de uma só cultura brasileira”.

“Isso era muito bonito de ver. Notar o quão a gente era grande e ao mesmo tempo pequeno, e como os conhecimentos estavam extrapolando nossos saberes. Eram conhecimentos para além do que eu aprendi na universidade. Além disso, a gente convidava pessoas externas das escolas e das comunidades, porque elas poderiam não só ver e elogiar o esforço dos alunos e provocar neles o orgulho de ter construído aquele projeto, mas também trazer mais elementos para enriquecer a aprendizagem. Desse ponto de vista, a pandemia não foi apenas um processo negativo, porque através da internet a gente se conectou com pessoas em diversas partes”.

Como resultado, notou-se a superação de estereótipos com relação ao continente africano e a interculturalidade: diálogo direto entre estudantes que representam povos, línguas e costumes. Além disso, ocorreu o reconhecimento da ancestralidade africana e indígena na vida dos estudantes e o orgulho de produzir conhecimento com criatividade. 

Para a escola, foi promovida também a importância dos movimentos sociais, da cultura, da inovação e projetos de sociedade não hegemônicos, assim como autonomia, diversidade e maior sensibilidade com relação a injustiças coloniais e outras formas de opressão.

Confira abaixo dois relatos dos estudantes  Abel Banco Kapingala Kalukembe (Angola) e Ana Carolina Fernandes (Brasil), que participaram do projeto:

 

O que diz a legislação e a BNCC sobre a educação para as relações étnico-raciais

Para embasar seu trabalho, Aline se apoiou em duas leis. A primeira delas foi a de número 10.639/2003, que acrescentou à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) dois artigos sobre o ensino de cultura e história afro-brasileiras e especifica que o ensino deve privilegiar o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional.

A segunda é a lei número 11.645/2008, que alterou a LDB e passou a obrigar o estudo da história e cultura indígena em todas as escolas do Ensino Fundamental e Médio. “O estudo dos povos nativos também ganhou destaque no projeto de intercâmbio, numa perspectiva que contemplasse a nossa origem e que falasse sobre como fomos impactados pelo processo de colonização”, explica.

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), por sua vez, trata o tema da educação para as relações étnico-raciais de forma transversal e integradora, a ser implementado pelos sistemas de ensino e escolas, a partir da sua autonomia e competência. Não há, contudo, um direcionamento objetivo da implementação de ações afirmativas, então a inclusão cabe aos currículos elaborados pelas  Secretarias de Educação e aos planejamentos realizados pelas escolas. 

De acordo com Aline, embora a falta de profundidade da BNCC para com o tema seja um ponto de crítica de ativistas, estudiosos e pesquisadores do campo das relações sociais, ela também não exclui das diretrizes já pré-estabelecidas para esse trabalho. “Eu entendo que posso trabalhar com ambos. Ou seja, posso aplicar a BNCC, envolvendo as habilidades e desenvolvendo tudo o que está preconizado nela, mas sem abrir mão dos estudos das Diretrizes Curriculares da Educação para as Relações Étnico Raciais”.

Antirracismo ainda distante da realidade das escolas

Segundo a pesquisa “Lei 10.639/03: a atuação das Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira”, lançada em abril por Geledés – Instituto da Mulher Negra e Instituto Alana, com parceria da Imaginable Futures e apoio da Uncme e Undime, a principal lei de combate ao racismo nas escolas ainda é desrespeitada por 71% das Secretarias Municipais de Educação. A baixa institucionalização é observada a partir dos dados sobre instrumentos de gestão pública que organizam a política educacional nos municípios, como a previsão orçamentária, disponibilidade de equipe, articulação da rede de ensino e regulamentação local.

Ao serem perguntadas sobre a regulamentação da lei em nível municipal, 21% das secretarias afirmam ter leis, decretos ou normativas voltados para o ensino de história e cultura afro-brasileira na Educação Básica. Já em relação aos currículos, 90% dos municípios responderam que realizaram suas revisões sendo que, destes, 58% estão de acordo com a BNCC e com atenção específica à educação das relações étnico-raciais e 32% considerando apenas a BNCC. Parte considerável das escolas das redes incorporaram a temática em seus Projetos Político-Pedagógicos (PPPs), apesar de o fazerem prevendo atividades apenas durante a semana ou mês em que se celebra o Dia da Consciência Negra. 

De acordo com Beatriz Benedito, mestra em Políticas Públicas e bacharela em Ciências e Humanidades pela Universidade Federal do ABC e analista de políticas públicas no Instituto Alana, o que a pesquisa conclui é que as Secretarias Municipais de Educação e organizações comprometidas com uma educação democrática, inclusiva e integral, possuem um grande desafio pela frente: priorizar o compromisso antirracista na produção de políticas educacionais, para que desta forma as práticas avancem de forma perene e consistente, garantindo o direito de todas as crianças e adolescentes de conhecerem a história do país em que vivem sob diferentes perspectivas.

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Trajetória profissional e pessoal para o antirracismo

O preparo de Aline para atuar no campo das relações étnico-raciais e da educação antirracista começou em 2005, quando entrou na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Na época, percebeu o racismo em sua própria vivência. “Foi um ano em que apenas 2% da população de estudantes negros existia nas universidades públicas. Eu era a exceção em vários espaços. Meu projeto vem desse contexto e de situações de discriminações que eu sofri na universidade, fazendo com que eu precisasse buscar uma rede de apoio. E um dos espaços mais importantes da minha trajetória acadêmica foi o Programa Ações Afirmativas na UFMG, de ensino, pesquisa e extensão”. 

Ela conta que o programa tem, dentre outros objetivos, levar estudantes da graduação para a pós-graduação, onde há um outro abismo da população negra estar presente. “Quando eu entrei na pós, eu já tinha experiência como bolsista de extensão e iniciação científica, além de ter atuado com o tema em escolas. Isso, somado a minha experiência familiar e atuação com a pastoral afro ligada aos movimentos de base da Igreja Católica, me ajudaram a me entender como sujeito de direito. Portanto, eu tinha o entendimento de que o racismo era algo latente e prejudicava o ensino e a aprendizagem”.

Já como professora, conta Aline, o fortalecimento veio de outro programa da UFMG, de extensão para docentes da rede municipal. “Isso tudo contribuiu para que eu chegasse lá mais encorajada a fazer o desenvolvimento das leis 10.639 e 11.645”. Após realizar o projeto Raízes Brasil Angola, ela deu continuidade aos trabalhos de educação para as relações étnico-raciais com outro projeto focado nos povos indígenas. Já em 2023, se afastou da sala de aula e passou a atuar junto à Diretoria Regional de Educação de sua região de moradia, antes disso, na Escola Municipal Lídia Angélica, trabalhou na escrita de projetos, incentivo de grupos de estudantes antirracistas na escola e apoio a professores para o uso das Diretrizes Curriculares da Educação para as Relações Étnico Raciais e da BNCC numa perspectiva de educação antirracista.

“No currículo de Geografia, mesmo na BNCC ou em seus livros didáticos, a África é o último continente a ser estudado. Com isso, é também o conteúdo e as vidas menos compreendidas. Isso faz pouco sentido do ponto de vista antirracista no Brasil, que é um país majoritariamente negro. Se eu for pensar em continente do ponto de vista cultural e político, eu traria a relação África e América para os primeiros capítulos do livro didático dos Anos Finais do Fundamental. Primeiro, porque a maior parte da população que está aqui não é europeia, mas sim africana e indígena. E, segundo, por permitir que compreendêssemos a diáspora negra, a migração forçada que vivenciamos. A perspectiva africana faz com que o aluno entenda o que foi África antes da recente história do colonialismo e do neocolonialismo, e o permite fazer uma leitura crítica do mundo, da ideia de homogeneização cultural vendida como progresso; que a cabo só aumenta a exploração de um grupo sobre o outro, considerando raça, classe, gênero e outras formas de opressão”.

 

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