Por João Paulo Derocy Cêpa, Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Consultor Pedagógico e Especialista em BNCC e Currículo – Programa Formar: Redes que Transformam a Educação (Instituto Gesto/Fundação Lemann).
A COVID-19 causou severas mudanças na oferta do ensino básico em 2020. Segundo o Mapa de Monitoramento Global de Fechamento das Escolas pelo COVID-19 elaborado pela UNESCO, em abril de 2020, quando houve um pico de interrupção das atividades presenciais, aproximadamente 1,4 bilhão de alunos foram afetados pelo fechamento das escolas em 173 países. Os sistemas educacionais construíram modelos alternativos para garantir a continuidade pedagógica e o vínculo entre estudantes e professores.
No Brasil, observamos, a partir do segundo semestre, o surgimento de normativas e orientações para a flexibilização ou priorização curricular para garantir as aprendizagens essenciais aos estudantes.
Este estudo tem como objetivo realizar uma análise preliminar do processo de flexibilização curricular com dois focos:
- Reflexões sobre o processo de priorização curricular de documentos publicados até janeiro de 2021 pelas Secretarias Estaduais de Educação à luz da Base Nacional Comum Curricular (BNCC);
- Perspectivas do processo de flexibilização curricular, considerando o planejamento do ano letivo de 2021 a partir do continuum curricular.
Flexibilização curricular em tempos de pandemia
O Parecer 19/2020 do Conselho Nacional de Educação (CNE) define a flexibilização curricular como uma “revisão do currículo proposto e seleção dos objetivos ou marcos de aprendizagem essenciais previstos para o calendário escolar de 2020-2021” (2020, p,93).
A BNCC responde, na perspectiva conceitual de Almeida e Roldão pelo core curricular, ou seja, “o que é socialmente reconhecido como competência(s) indispensável(is), sustentadas por sólido conhecimento, que o aluno deverá adquirir na escola” (2018, p.15).
Ela compõe a primeira parte de um binômio curricular, que tem como parte complementar a contextualização desta base comum, materializada nos currículos locais e planos curriculares das escolas, que ampliam e organizam as aprendizagens a partir das características de cada território, e nos planos didático-pedagógicos estabelecidos pelas equipes gestoras e docentes.
Nesta perspectiva binomial da gestão curricular no Brasil (comum / contextual), a BNCC assume um papel estratégico, permitindo ajustar os campos de decisão e estabelecer acordos entre os diferentes atores envolvidos com base num projeto comum de desenvolvimento discente e melhoria da aprendizagem em cada Estado e Município.
A existência deste conjunto comum de aprendizagens esperadas para todas as escolas do país também foi amplamente considerada como um eixo de replanejamento curricular nos três pareceres publicados pelo CNE (Pareceres 05/2020, 11/2020 e 19/2020) e inspirou a flexibilização em várias secretarias de educação brasileiras.
Portanto, vários documentos curriculares flexibilizados analisados neste estudo seguem a BNCC como referência da priorização das aprendizagens. No documento do Estado do Amapá (2020), há referência de trabalhar as habilidades que influenciam fortemente o desenvolvimento das competências gerais, de áreas de conhecimento ou específicas dos componentes curriculares.
A Matriz de Habilidades Estruturantes do Documento Curricular para Goiás (2020) reforça, em seu texto introdutório, a importância de que a flexibilização observe “a necessidade de um processo de ensino inovador, que promova a educação integral por meio do desenvolvimento de competências e habilidades” (p.7). Vale lembrar que a Educação Integral é um “cânone” da BNCC, expresso nas 10 Competências Gerais e desmembrado nas demais aprendizagens em cada componente curricular.
Há ainda mais duas características importantes do processo de elaboração de documentos de flexibilização no Brasil. O primeiro foi a existência dos Mapas de Foco da BNCC, material produzido pelo Instituto Reúna que serviu como um importante subsídio técnico para a definição das aprendizagens essenciais, focalizando a correção de distorções e desvantagens educacionais em processo e durante as aulas (incluindo a pandemia neste cenário).
O segundo aspecto importante para o fortalecimento dos processos de flexibilização foi o envolvimento intencional de integrantes das equipes de formadores ou redatores do Programa de Apoio à Implementação da Base Nacional Comum Curricular (PRÓ-BNCC). Professores e outros profissionais da educação que receberam formações do Ministério da Educação e possuem um importante conhecimento sobre fundamentos pedagógicos, BNCC e currículos locais foram convidados para o trabalho. Eles estiveram presentes então na construção das Orientações Curriculares para a Pandemia do Espírito Santo, nas OCPC´s (Orientações Curriculares Prioritárias do Ceará), no CPA (Currículo Prioritário Amapaense), na Priorização Curricular de Sergipe e na Matriz de Habilidades Estruturantes do Documento Curricular de Goiás.
Por último, vale destacar ainda que os três últimos documentos (Amapá, Sergipe e Goiás) foram construídos em Regime de Colaboração entre municípios e estado, com representantes da UNDIME e das redes estaduais.
Por se tratar de um estudo preliminar, não analisamos todos os documentos flexibilizados, tampouco, foi possível mensurar a eficácia dessas estratégias de priorização curricular. Para isso, seria necessário avaliar o processo de implementação em cada território e as escolhas dos sistemas de ensino e escolas.
Continuum curricular 2020-2021
O Parecer 19/2020 do CNE orienta que os sistemas de ensino planejem um continuum curricular 2020-2021 para evitar o aumento de alunos retidos no final do ano letivo de 2020 e para cumprir os objetivos de aprendizagem previstos. Tanto neste parecer quanto no 11/2020 está indicado que o novo ano letivo seja planejado considerando os avanços e, principalmente, as dificuldades de aprendizagem na trajetória dos estudantes, articulando um bloco único.
Está recomendado que: “o replanejamento curricular do calendário de 2020 considere as competências da BNCC e selecione os objetivos de aprendizagem mais essenciais relacionados às propostas curriculares das redes e escolas e, no caso de opção para continuidade de 2020-2021, as instituições deverão definir o planejamento de 2021 incluindo os objetivos de aprendizagem não cumpridos no ano anterior”. (CNE, 2020, p. 100)
Para reverter o cenário adverso de desigualdades oriundo do cenário de 2020, o CNE indica que os gestores escolares insiram em seus planos estratégicos iniciativas que apoiem o mapeamento da defasagem e um planejamento pedagógico focado em mitigar, de forma progressiva, as distorções e perdas oriundas da ausência das aulas presenciais.
Olhando para este desafio, a priorização de aprendizagens tem um papel estratégico. As redes que produziram documentos de flexibilização curricular (a partir da BNCC e dos currículos locais) podem utilizá-lo como um “currículo de transição” e partir daí, alimentar processos de avaliação diagnóstica ou formativa, programas de nivelamento e recuperação da aprendizagem, ações formativas, bem como produzir materiais para apoiar professores no planejamento, ensino e avaliação das aprendizagens prioritárias de 2020 que impactam de forma decisiva no aprendizado em 2021.
Com base nas premissas apresentadas neste estudo, consideramos que o planejamento do continuum curricular deve atender quatro grandes desafios para o ano letivo de 2021: o acolhimento da comunidade escolar, a avaliação das lacunas de aprendizagem e das condições socioemocionais dos estudantes, o acompanhamento contínuo da aprendizagem dos alunos e o apoio ao fortalecimento da mediação pedagógica nos diferentes modelos de ensino que serão ofertados nas escolas.
Reflexões finais
A priorização curricular não é um fim em si mesma, mas uma estratégia para adequar o ritmo do ensino com as condições efetivas de aprendizagem dos estudantes em 2020, com impacto no planejamento de 2021 (e possivelmente, 2022 ou 2023).
Existe um longo caminho para entender e mensurar de forma mais ampla o impacto de todos os requisitos que analisamos de forma preliminar no processo de flexibilização dos currículos estaduais: a eficiência da implementação da priorização e os impactos efetivos na recuperação das lacunas de aprendizagem decorrentes da interrupção das aulas presenciais durante a pandemia da COVID-19.
Referências
Almeida, S.; Roldão, M. D. C. (2018). Gestão curricular: Para a autonomia das escolas e professores. Ministério da Educação/Direção-Geral da Educação, Direção-Geral da Educação.
Conselho Nacional de Educação (2020). Parecer CNE/CP N. 05/2020.
Conselho Nacional de Educação (2020) Parecer CNE/CP N. 11/2020.
Conselho Nacional de Educação (2020) Parecer CNE/CP N. 19/2020.
Coordenação Estadual de Implementação da BNCC no Estado de Goiás (2020). Matriz de Habilidades Estruturantes do Documento Curricular de Goiás.
Instituto Reúna (2020). Mapas de Foco da BNCC.
Secretaria da Educação do Estado do Ceará (2020). Orientações Curriculares Prioritárias do Ceará.
Secretaria de Estado da Educação do Amapá (2020). Currículo prioritário amapaense.
Secretaria de Estado da Educação do Espírito Santo (2020). Orientações Curriculares para a Pandemia do Espírito Santo.
Secretaria de Estado da Educação, do Esporte e da Cultura de Sergipe (2020). Priorização Curricular.