*Por Magda Soares (professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG e pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita/Ceale) e Francisco Soares (Doutor em Estatística pela University of Wisconsin – Madison e pós-doutor em Educação pela University of Michigan – Ann Arbor. Foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira/Inep e membro do Conselho Nacional de Educação, no qual foi um dos relatores da Base Nacional Comum Curricular. É professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG)
Em 2007, o município de Lagoa Santa, em Minas Gerais, deu início a um projeto de desenvolvimento profissional de todos os professores do ciclo de alfabetização e letramento, abrangendo a educação infantil e os anos iniciais do ensino fundamental. Parte essencial do projeto foi a definição das metas em progressão, as habilidades, na terminologia da BNCC, a serem alcançadas pelas crianças em cada ano do ciclo, na área da Língua Portuguesa, e em cada um dos componentes dessa área: alfabetização, leitura, escrita e oralidade. Assim, desde 2007 o município já se orientava por uma base municipal curricular na área de Língua Portuguesa, no ciclo de alfabetização e letramento. Este texto introduz uma breve reflexão sobre o ensino e seus resultados apenas no componente leitura no ciclo de alfabetização e letramento de Lagoa Santa.
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Lagoa Santa se organiza por componentes da base curricular, sendo a leitura um dos componentes da aprendizagem de Língua Portuguesa. Na BNCC, o que consideramos componentes recebe a denominação de práticas de linguagem, e a leitura é considerada um objeto de conhecimento.
Na realidade, a leitura só é um “objeto de conhecimento” para pesquisadores e estudiosos que a tomam como tal, pesquisam e estudam os processos cognitivos e linguísticos de leitura; para o ensino, a leitura é uma das práticas de linguagem, não um objeto de conhecimento, uma prática de linguagem que ocorre em inúmeras situações de comunicação por meio da língua escrita — pela mediação de textos.
As crianças e jovens precisam a compreender textos e interpretar textos na escola. No entanto, refletindo o uso gerencial dos resultados obtidos no SAEB, as redes têm exigido que os projetos pedagógicos de suas escolas reflitam muito de perto as questões e as matrizes de avaliação do SAEB. Estes documentos enfatizam o domínio de habilidades de leitura isoladas. Como consequência, os estudantes são expostos, tanto no ensino como na avaliação, apenas a fragmentos de textos intencionalmente escolhidos para verificar o seu domínio de habilidades específicas. No entanto, o objetivo final da educação básica não é o domínio de habilidades específicas, nem a capacidade de ler fragmentos de textos, mas a capacidade de mobilizar as diferentes habilidades de leitura para a construção do sentido de textos autênticos, aqueles que serão exigidos para uma inserção plena dos estudantes na cidadania e no trabalho. Por isso, em Lagoa Santa, o centro da aprendizagem do ler e compreender é o texto, tanto nas atividades de leitura e compreensão em sala de aula quanto nos momentos de diagnóstico dos resultados dessa aprendizagem.
Este é o segundo ponto que caracteriza o ensino da leitura em Lagoa Santa: a “avaliação” dos resultados do ensino da leitura é substituída por diagnósticos periódicos, que visam acompanhar o processo de aprendizagem das crianças ao longo de cada ano e ao longo dos anos, assim possibilitando que o ensino retome metas que se revelem ainda não plenamente atingidas e indique o caminho a ser seguido no ensino. Praticamente eliminou-se em Lagoa Santa a palavra avaliação, pelo sentido que ela carrega de definição do valor da aprendizagem, quando o que realmente se quer saber é a qualidade da aprendizagem, o que e quanto aprenderam as crianças do que foi desenvolvido durante determinado período. A mesma prova é aplicada em cada ano de escolarização em toda a rede, e os resultados de cada ano são agrupados e analisados, registrados em tabelas que possibilitam identificar visualmente o resultado de cada questão e de cada criança, de modo que se possa definir metas que precisam ser ainda desenvolvidas e metas que já foram atingidas. A prova é construída sempre tendo como base textos, um, dois ou três de diferentes gêneros, cada um sendo o suporte de várias questões, que no seu conjunto demandam as diferentes habilidades de leitura necessárias para a plena compreensão dos textos. Cada professora corrige a prova de sua turma, registrando e analisando os resultados em uma tabela, e os resultados das turmas de cada ano são reunidos em uma única tabela, evidenciando o nível de leitura de cada ano na rede; as tabelas são analisadas em todas as escolas. Dessa forma pode-se acompanhar a aprendizagem e o ensino e analisar a qualidade e a equidade do ensino da leitura na rede.
Como resultado destas práticas, diferentemente do que as avaliações de larga escala têm revelado em leitura dos estudantes brasileiros em todas as etapas da escolarização, em Lagoa Santa tem-se verificado um progressivo aumento da qualidade da aprendizagem em leitura. Isso é certamente fruto de uma opção pedagógica centrada em textos autênticos usados para ensino e verificação do desenvolvimento das habilidades.
As avaliações de larga escala, como o SAEB, não fornecem informações que permitem uma análise pelas escolas do que foi aprendido e do que não foi aprendido, podendo, assim, orientar o ensino. No entanto, com as possibilidades que oferecem atualmente os recursos tecnológicos, não seria difícil que essas avaliações se transformassem em diagnósticos, ou avaliações para a aprendizagem, e não da aprendizagem.