Por Beatriz Benedito, Mestra e bacharela em Políticas Públicas e bacharela em Ciências e Humanidades pela Universidade Federal do ABC e analista de políticas públicas no Instituto Alana
A principal lei de combate ao racismo nas escolas, a Lei 10.639/03, é desrespeitada por 71% das Secretarias Municipais de Educação, segundo pesquisa “Lei 10.639/03: a atuação das Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira“, lançada em abril por Geledés – Instituto da Mulher Negra e Instituto Alana, com parceria da Imaginable Futures e apoio da Uncme e Undime. A baixa institucionalização da lei é observada a partir dos dados sobre instrumentos de gestão pública que organizam a política educacional nos municípios, como a previsão orçamentária, disponibilidade de equipe, articulação da rede de ensino e regulamentação local.
Ao serem perguntadas sobre a regulamentação da lei em nível municipal, 21% das secretarias afirmam ter leis, decretos ou normativas voltados para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira na educação básica. Já em relação aos currículos, 90% dos municípios responderam que recentemente realizaram suas revisões sendo que, destes, 58% estão de acordo com a BNCC e com atenção específica à educação das relações étnico-raciais e 32% considerando apenas a BNCC. Parte considerável das escolas das redes incorporaram a temática em seus PPPs, apesar de o fazerem prevendo atividades apenas durante a semana ou mês em que se celebra o Dia da Consciência Negra. É importante destacar que há divergência entre municípios do mesmo estado sobre a existência de regulação estadual no tema, sugerindo que os respondentes podem ter pouca clareza sobre essa regulamentação, o que também nos aponta a importância do fortalecimento do regime de colaboração e pacto federativo nesta agenda.
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Ao apresentar que apenas 8% dos municípios possuem dotação orçamentária destinada para esta agenda ou, ainda, que somente 5% dos municípios têm uma equipe ou departamento específicos para o tema, a pesquisa evidencia o que antes era uma percepção do campo: a atuação, por vezes, limita-se a ações solitárias dos profissionais de educação que estão na escola ou na administração pública, levantando esta bandeira de forma comprometida e limitada. Ou seja, percebemos que o compromisso com a educação antirracista acontece muitas vezes de forma paralela ao currículo municipal ou de forma não planejada ao longo do ano pela gestão pública e a implementação da lei resiste nas mãos de poucos profissionais, sendo que esta é uma agenda estruturante para o país e o direito de todas as pessoas.
Se, por um lado, a atual implementação da lei está em descompasso com a importância do compromisso antirracista para a garantia de direitos de crianças e adolescentes com absoluta prioridade, como vem apontando organizações do movimento negro ao longo dos anos, por outro, é importante destacar o interesse e disponibilidade de 21%, mais de 1.100 municípios brasileiros, que contribuíram para termos hoje o mais próximo de um diagnóstico sobre a situação da lei e que pode guiar a atuação tanto do terceiro setor quanto de governos com base em evidências e de forma coordenada.
A pesquisa de Geledés e Alana, se soma, portanto, ao recente levantamento realizado pelo Projeto Seta (Sistema de Educação Transformador e Antirracista), em que foi possível identificar um ecossistema com 22 organizações de movimentos sociais e do terceiro setor que organizaram pesquisas relacionadas ao tema Educação e Raça, além de 493 artigos, teses e dissertações acadêmicas realizados entre 2020 e 2021 sobre o assunto. A produção de conhecimento relacionada à Lei 10.639/03 tem permitido que tomadores de decisão pautem o debate e assumam o compromisso político para a aplicação da Lei com embasamento técnico para o fortalecimento da política educacional em uma perspectiva antirracista.
A produção e difusão de pesquisas e materiais nesta agenda junto aos gestores públicos contribuem com os principais desafios apontados pelo estudo de Geledés e Alana: ausência de apoio para efetivação da lei; dificuldade dos profissionais sobre como transpor o ensino nos currículos e projetos das escolas; falta de informação e orientação sobre o assunto. Os temas considerados mais importantes para serem trabalhados nas escolas também nos dão uma bússola para uma atuação assertiva em municípios com diferenças de maturidade na aplicação da lei: a diversidade de culturas quilombolas, afro-brasileiras e africanas aparece no topo da lista, seguida por gêneros, estilos e autores negros na literatura e alimentação e cultura alimentar africana e afro-brasileira.
O que a pesquisa conclui é que as Secretarias Municipais de Educação e organizações comprometidas com uma educação democrática, inclusiva e integral, possuem um grande desafio pela frente: priorizar o compromisso antirracista na produção de políticas educacionais, para que desta forma as práticas avancem de forma perene e consistente, garantindo o direito de todas as crianças e adolescentes de conhecerem a história do país em que vivem sob diferentes perspectivas. Nós, do terceiro setor, também temos o grande desafio em nos mantermos atentos e ativos para a construção de uma sociedade mais justa e equitativa e isso passa, necessariamente, pelo compromisso com o enfrentamento ao racismo.