Por Marcia Adriana de Carvalho, Professora da Rede Municipal de Caxias do Sul-RS. Foi presidente da Undime RS, integrante da executiva da Undime Nacional, presidente do CEED RS e presidente do FONCEDE.

A Resolução CNE/CP nº 02/2017 instituiu e orientou a implantação da Base Nacional Comum Curricular, que deve ser respeitada obrigatoriamente ao longo das etapas e respectivas modalidades no âmbito da Educação Básica. Ainda determinou o prazo máximo para a adequação dos currículos à BNCC, preferencialmente até 2019, podendo, no máximo, até o início do ano letivo de 2020.

A partir dessa definição, estados e municípios, redes e escolas organizaram suas equipes e cronogramas para que a BNCC pudesse chegar às salas de aula de todas as escolas brasileiras até o início do ano letivo de 2020. Esse movimento passou pela elaboração dos currículos estaduais, de territórios municipais, revisão de propostas pedagógicas e regimentos escolares, até chegar aos currículos escolares e planos de trabalho dos professores.

Mesmo sendo um processo democrático e participativo de reconstrução da política curricular, desde o lançamento em 2016 até sua implantação em sala de aula no início de 2020, as críticas e incertezas estiveram e seguem presentes na implementação.

O maior desafio é a formação continuada dos profissionais da educação, uma vez que toda a trajetória curricular esteve centrada nos “conteúdos”. Diz-se no senso comum que, se fosse possível planificar o cérebro de professores do ensino fundamental, seria de fácil percepção a leitura do rol de conteúdos que deveriam ser trabalhados em cada ano dessa etapa.

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Ocorre que a BNCC traz uma significativa mudança na estrutura curricular brasileira, uma vez que saem de cena os conteúdos e assumem como protagonistas as aprendizagens essenciais, traduzidas como conhecimentos, habilidades, atitudes, valores e a capacidade de os mobilizar, articular e integrar, expressando-se em competências. Já as competências são definidas como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores, para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho.

Essas definições precisam ser incorporadas no pensamento, no discurso e na prática dos professores para que a BNCC cumpra o seu papel de promover mais qualidade e equidade na aprendizagem dos estudantes, o que exigiu e exige de gestores da educação, seja em nível de rede ou de escola, a inclusão desses temas na formação permanente e continuada, garantindo a necessária transposição para os planos de trabalho e intervenções pedagógicas dos professores.

A mobilização e a execução de programas de formação das redes e escolas, especialmente de 2018 até o início do ano letivo de 2020, foi fundamental para a implantação da BNCC nas salas de aulas. Porém, a implementação foi abruptamente impactada pela pandemia declarada pela OMS em março de 2020, ou seja, nos primeiros dias do ano letivo de 2020, impedindo que os pressupostos legais de educação escolar e presencial fossem interrompidos pela emergência em saúde, que impediu crianças e estudantes de estarem presencialmente nos espaços escolares juntamente com seus professores, que iniciavam a efetivação de seus planejamentos para desenvolver os processos cognitivos mentais, as habilidades, por meio de objetos do conhecimento, para a concretização das aprendizagens essenciais.

Diante da calamidade pública de saúde, os planos curriculares sofreram ajustes e as redes e escolas tiveram que realizar o replanejamento curricular do calendário de 2020 considerando as competências da BNCC e selecionando os objetivos de aprendizagem mais essenciais relacionados às propostas curriculares das redes e escolas, o que se estendeu até 2021 e impelir a todos incluir nessa reorganização curricular os objetivos de aprendizagem não cumpridos do ano anterior.

Assim, desde 2020, as escolas brasileiras vêm implementando os objetivos de aprendizagem mais essenciais para cada ano e etapa da educação básica e, ainda, trabalhando de forma concomitante com a recuperação e a recomposição das aprendizagens essenciais da BNCC a que todas as crianças e estudantes tem direito de acessar e aprender.

No município de Caxias do Sul/RS (foto acima), a implementação da BNCC passou pela necessidade de flexibilização imposta pela pandemia no ano de 2020. Nos anos de 2018 e 2019 o município passou pelo processo de construção do referencial curricular do território estadual e do municipal, respectivamente. Logo, em 2020, ano de implementação desses documentos curriculares em sala de aula, fomos atropelados pela pandemia e foram necessárias escolhas do “essencial” em relação às aprendizagens essenciais. A partir disso, foram feitos movimentos com a participação dos professores de cada etapa e modalidade, cada área do conhecimento e componente curricular para trabalhar com o que foi considerado “essencial do essencial”. Os anos subsequentes, 2021, 2022 e, agora, 2023, acabaram por dar sequência ao trabalho do que é essencial, assim como foram sendo impelidos a trabalhar com a recomposição das aprendizagens, a recomposição curricular, ou seja, trabalhar o que não foi possível nos períodos anteriores e que são importantes para “integralizar” as aprendizagens a que as crianças e os estudantes têm necessidade e direito.

A RECUPERAÇÃO DE APRENDIZAGENS já conhecida pelos profissionais da educação, mesmo antes da pandemia, trata do conjunto de medidas para o progresso do nível de aprendizagem adequado à idade e ao ano escolar, por meio do uso de estratégias e atividades pedagógicas de diagnóstico, de acompanhamento e de consolidação das aprendizagens. Já a RECOMPOSIÇÃO DE APRENDIZAGENS, abordagem que surgiu com a pandemia da Covid-19, está associada ao ensino de habilidades e competências que foram prejudicadas pelo período pandêmico, uma vez que não foram trabalhadas e são fundamentais para a continuidade da trajetória pedagógica dos estudantes.

Para tanto, algumas estratégias foram e seguem sendo fundamentais para o alcance das finalidades educacionais, em especial, da garantia do direito de aprender de todas e cada uma das crianças e dos estudantes, após quase dois anos de escolas fechadas:

– Mobilidade escolar: assegurar o progresso contínuo dos estudantes no que se refere ao seu desenvolvimento pleno e à aquisição de aprendizagens significativas, lançando mão de todos os recursos disponíveis e criando renovadas oportunidades para evitar que a trajetória escolar discente seja retardada ou indevidamente interrompida, incluindo a mobilidade e a flexibilização dos tempos e espaços escolares, a diversidade nos agrupamentos de estudantes.

– Busca ativa escolar: a estratégia formulada pelo UNICEF, em parceria com a Undime, disponível gratuitamente para os municípios e apoia a identificação, registro, controle e acompanhamento de crianças e adolescentes que estão fora da escola ou em risco de evasão. Busca reunir representantes de diferentes áreas, como Educação, Saúde, Assistência Social e Planejamento, para fortalecer a rede de proteção;

– Acolhimento e clima escolar: o planejamento educacional deve ser baseado no acolhimento de toda a comunidade escolar, no zelo pelo clima da escola e na colaboração cujo foco seja a equidade de oportunidades educativas. Rodas e conversa com equipes, estudantes e famílias; atividades culturais como saraus; canais de escuta como lives periódicas são alguns exemplos de atividades de acolhimento.

– Flexibilização curricular: a necessidade de flexibilizar o currículo já existia antes e foi ressaltada pelas mudanças proporcionadas pela pandemia, um contexto que alterou significativamente as variáveis do ensino – tempo, espaço, materiais e recursos didáticos, relacionamento estudante-professor e estudantes-estudantes.

Atualmente, o cumprimento da política curricular e o atendimento do direito de aprender são desafios que permanecem e intensificam a busca por estratégias que permitam intervenções pedagógicas adequadas e na medida necessária para a qualidade e a equidade.

Por muito tempo um dos paradigmas educacionais foi a igualdade, que consistia em tratar todos como iguais, independentemente de quão diferentes cada pessoa seja. A BNCC trouxe outro paradigma, a equidade, que exige abordagem de forma diferente àqueles que não se encontram em situação de igualdade, ou seja, exige o atendimento das necessidades que cada pessoa tem para alcançar o mesmo objetivo.

Ainda temos um longo percurso pela frente, mas o caminho já percorrido precisa ser registrado e analisado, visando aos ajustes necessários para implantação plena da política curricular, o que vem ao encontro do que diz a Resolução do CNE de 2017, que prevê que em cinco anos a revisão da BNCC, o que só pode ser efetivado por meio da análise do trajeto já percorrido: refletir acerca das facilidades e dificuldades, dos limites e possibilidades, para indicar os próximos passos de forma ajustada, com a necessária regulamentação pelos órgãos normativos dos sistemas de ensino.

Esse movimento curricular permanente e dialético contribui para o alcance do ODS 4 que é “assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos”.

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