Com 29% da população indígena registrada no Brasil pelo último Censo, o estado do Amazonas completa 2025 uma década do início da implementação de sua proposta curricular e matriz curricular intercultural. Embora tenha enfrentado muitos desafios nesse processo, o trabalho iniciado em 2014 se destaca especialmente por contemplar a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) juntamente com os conhecimentos de cada povo originário presente no território, atendendo mais de 14 mil estudantes indígenas.
Segundo José Farias, Pedagogo da Gerência de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Educação (GEEI-SEDUC/AM), a construção dessa proposta curricular passou a ser endereçada com mais consistência após um trabalho conjunto iniciado em 2014 entre a GEEI-SEDUC e a Universidade Federal do Amazonas, a Universidade do Estado do Amazonas, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Conselho de Educação Escolar Indígena. Nesse período, a BNCC também estava sendo construída nacionalmente e ganhou espaço em todas as discussões para a construção da proposta curricular indígena amazonense.
Além dessas instituições, também participaram do processo de estruturação os atores principais da educação nas comunidades indígenas, como lideranças, professores, familiares, estudantes e representantes comunitários, como rezadores, benzedores, parteiras, etc.:
Componentes curriculares em diálogo com a cultura dos povos
O pedagogo conta que, para que a matriz curricular intercultural dialogasse com os componentes curriculares da BNCC, cada comunidade apresentou interesses e conhecimentos que foram sistematizados e inseridos no documento, com inserções que ajudam os estudantes a compreender os temas das aulas dentro de seu contexto. “Por exemplo, cada povo tem sua forma de utilizar e agir na matemática, e levamos isso em conta ao pensar nesse componente. Pode-se aprender grandezas e medidas por meio do roçado, ou proporções ao observar as construções de casarões de reunião ou construções habitacionais indígenas”, exemplifica.
Farias diz também que a SEDUC, ao aprofundar essa proposta curricular, procurou as comunidades para fazer indicativos diretos em cada componente, apontando onde poderiam adequar os temas às suas realidades. “Em física, por exemplo, é comum um exercício de calcular quanto tempo um carro que saiu do ponto zero leva para atingir uma velocidade X num percurso Y. Mas e se eu não tenho um carro aqui? Eu tenho o meu arco, que está num ponto zero de velocidade, que ganha propulsão à sua velocidade tendo um alvo lá na frente. O estudante indígena tem esses cálculos de cabeça, ele já aprendeu com seus ancestrais. Mas, ao fazer a adequação para seu contexto, ele consegue ver que a física presente no livro também está no seu dia a dia, ganhando pertencimento no processo de ensino e de aprendizagem”.
Além dos componentes da BNCC, a proposta curricular do Amazonas contempla componentes específicos. Um exemplo é o componente de ‘Arte, cultura e mitologia’, que engloba o conteúdo que se pode trabalhar em educação artística ou artes. “É um processo em que o estudante vai conhecer as artes plásticas, saber quem é a Monalisa, quem é Da Vinci, mas também vai saber que ele tem esse conhecimento na educação indígena, trazendo os aspectos não só da pintura que ele pode apresentar num artesanato, mas também os grafismos e os desenhos corporais com o seu significado, quais são para guerras, quais são para festas, pinturas que que são de um clã específico etc.”, explica o pedagogo.
Outro componente específico é chamado de ‘Formas próprias de educar’ e precisou um diálogo ainda mais próximo das comunidades junto à rede de ensino. “Esse componente não está literalmente ligado à BNCC, mas também não está solto, porque perpassa todas as áreas de conhecimentos e formas próprias de educação. Por exemplo, na escola convencional a gente trabalha a inserção do jovem no mercado de trabalho. Em ‘Formas próprias de educar’, identificamos qual o nível de função ativa o jovem pode exercer, ou seja, o que esse indígena vai fazer na sua comunidade. Ele vai ser um caçador? Vai trabalhar na construção, ser um líder comunitário, ou até um líder espiritual? Tem todo um preparativo para esse jovem, sempre dependendo do que ele quer, para que ele possa desenvolver esses conhecimentos para dentro da comunidade. Ou fora dela, caso ele queira sair. É um trabalho para que ele tenha desenvoltura dentro do seu círculo social e fora dele”, explica Farias.
A proposta curricular para os povos indígenas do Amazonas contempla ainda aspectos de língua estrangeira, com educação multilíngue nas mais de 40 línguas faladas no território, direitos e deveres indígenas e até mesmo práticas corporais e esportivas de cada comunidade:
A construção do que a gente almeja dentro da educação escolar indígena é que o estudante possa ter nesse desenvolvimento uma emancipação, que ele possa se desenvolver dentro da sua comunidade sem precisar sair dela, mas também que não o impeça de sair, se for uma escolha nessa direção.
Conheça outra práticas pedagógicas que reforçam os saberes indígenas:
- Itinerários Amazônicos com diversas atividades e conteúdos sobre diversidade e a região norte do país.
- Ensaios sobre a Educação do Instituto Unibanco reforça a importância de uma política pública adequada aos povos originários.
Desenvolvimento de aplicativo para valorizar a cultura indígena Paiter Suruí e reforçar a identidade indígena.
Desafios da implementação
Para José Farias, os principais desafios vivenciados pela rede do Amazonas no percurso de implementação e aprimoramento da proposta curricular tem sido lidar com aspectos de burocracia e com a extensão territorial do estado. “Não é só implementar uma matriz curricular ou implementar o Novo Ensino Médio, mas também dar assistência dentro de orientações pedagógicas, de práticas de formação continuada e garantir visitas às comunidades. Nós temos as coordenações regionais de educação nos municípios, mas há lugares longe para se deslocar, como o Vale do Javari e alguns pontos do Rio Negro”, conta.
Outro desafio apontado por Farias é o fato de que, embora a matriz curricular do Novo Ensino Médio já esteja implementada há dois anos, ainda existe grande necessidade de ampliar o diálogo das sedes dos municípios com as comunidades indígenas:
A gente é chamado em escolas não indígenas principalmente no mês de abril, quando elas buscam alguém para falar sobre as populações indígenas com os alunos. A escola indígena tem que estar aberta para os conhecimentos da BNCC, mas as escolas não indígenas também precisam estar abertas aos conhecimentos tradicionais. Uma educação indígena pode ser até mais rica em termos de objeto de conhecimentos, porque, além de trabalhar a BNCC, ela trabalha os conhecimentos tradicionais contextualizados à Base, enquanto nas nossas escolas não indígenas a gente quase não aborda as questões dos nossos povos originários e, se aborda, é no 19 de abril.
O que diz a BNCC sobre a Educação Indígena?
A BNCC reconhece a importância de valorizar e respeitar a diversidade étnico-cultural do país, incluindo os povos indígenas para além das datas comemorativas. Dentro desse contexto, propõe que a educação indígena seja abordada ao longo do ano letivo de forma transversal em diferentes áreas do conhecimento, como história, geografia, ciências sociais, linguagens e outras disciplinas. Ela enfatiza a valorização da cultura, história, línguas e tradições dos povos indígenas, assim como o respeito aos seus direitos e saberes, ao mesmo tempo que preconiza a necessidade de uma educação intercultural, com diálogo entre as diferentes culturas presentes no país.
Análise: Transformar paradigmas educacionais a partir do exemplo do Amazonas
Você sabia?
Desde 2022, celebra-se no dia 19 de abril o Dia dos Povos Indígenas, pejorativamente chamado de Dia do Índio até então. A mudança na nomenclatura buscou dar ênfase à importância dos povos originários no contexto brasileiro e às suas individualidades. O termo “indígena” significa “natural do lugar em que se vive” e abrange as especificidades linguísticas e culturais desses povos. O termo “índio”, por sua vez, carrega ideias ultrapassadas e não abrange esses aspectos.
- Boas práticas: Os desafios da educação para as relações étnico-raciais: uma experiência em Belo Horizonte (MG)