Por Beatriz Benedito (Analista de políticas educacionais do Instituto Alana) e Raquel Franzim (Diretora de Educação e Cultura da Infância do Instituto Alana)

A discussão sobre a regulamentação do ensino domiciliar, ou homeschooling, como vem sendo tratado, não é recente no Brasil, sendo o primeiro projeto de lei apresentado em 1994. Em nível nacional, o assunto retornou à agenda pública em 2018, após o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) a um recurso extraordinário em que a maioria dos ministros entendeu que, para o homeschooling ser legalizado, é necessária sua regulamentação pelo Congresso Nacional.

Em 2021, em meio à maior crise sanitária do país e com graves impactos de natureza multidimensional em toda a sociedade, o ensino domiciliar se tornou a única pauta prioritária do governo federal para a educação no legislativo. Chama a atenção que a discussão sobre temas urgentes da educação brasileira, como o aumento da pobreza de aprendizagem e da evasão escolar, sejam secundários e mobilizem tão poucos esforços do Estado brasileiro.

Nota-se também o total desalinhamento da agenda da União com as prioridades dos sistemas estaduais e municipais de educação, que coordenaram seus investimentos na complexa continuidade das atividades educativas durante a pandemia concomitante ao alinhamento dos currículos locais à Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

A defesa do homeschooling como política pública representa um retrocesso nas políticas de educação, porque vai na contramão dos esforços e das normativas que buscam estabelecer padrões mínimos de qualidade na oferta de serviços educacionais. A qualidade da educação está em risco ao se propor uma regulamentação que flexibiliza o direito de bebês, crianças e adolescentes em serem educados e se desenvolverem plenamente por meio da educação escolar.

Como já previsto na legislação, a educação é responsabilidade compartilhada entre sociedade, Estado e famílias, sendo fundamental a parceria entre escola e famílias. As aprendizagens que ocorrem em casa e na escola são complementares, porém distintas, sendo apenas a escolar capaz de proporcionar o conjunto de competências e habilidades necessárias para a formação integral dos estudantes. Para tanto é necessário um processo intencional de ensino e aprendizagem, mediado por profissionais licenciados para a docência, na mediação com outros estudantes para a produção de conhecimentos cognitivos, físicos, socioemocionais, culturais e naturais.

 

 

Neste sentido, a condição para uma educação de qualidade requer ainda maior profissionalização de educadores em diferentes dimensões, como construção do currículo, escolhas metodológicas, materiais e recursos didáticos, mediação e interações com colegas e outros adultos educadores, processos avaliativos, usos dos espaços internos e externos à escola. Esta arquitetura demanda formação inicial e continuada alinhadas à BNCC, sistemáticos investimentos em articulação das redes públicas, supervisão e acompanhamento direto de gestores escolares e colaboração intersetorial com secretarias que sustentam a permanência dos estudantes nos processos educativos por meio de programas suplementares, como merenda, material e transporte escolar, livros didáticos, entre outros. Dito isso, é importante alertar que a aprovação do ensino domiciliar impacta também a complexa operação das redes públicas e privadas e onera financeiramente todos os entes federados.

Está comprovado em diversas pesquisas que políticas públicas que estimulam o acesso e a permanência em ambientes escolares desde a educação infantil ampliam o tempo de escolaridade, o acesso ao ensino superior e o aumento da renda média na vida adulta. Em nosso país, a permanência de crianças na escola também gera efeitos protetivos no âmbito das violências e desigualdades sofridas pelos estudantes, especialmente os mais vulneráveis.

O direito de ser educado na escola é recente em nossa sociedade. Em uma época de crise econômica como a que vivemos, a política de indução ao ensino domiciliar pode legitimar o abandono intelectual de milhares de crianças por suas famílias que, na luta pela sobrevivência, direcionam seus filhos precocemente ao trabalho. Pode induzir ainda a esconder violações físicas, sexuais e psíquicas que inúmeras crianças sofrem em suas casas, muitas vezes naturalizadas como direito dos pais sobre seus filhos. Pode levar, também, ao pouco apreço e convivência respeitosa com as diferenças que fazem parte da sociedade e que, apenas fora de casa, aprendemos a conviver com elas.

O direito de aprender na escola é base fundamental de constituição de outros direitos, como de deveres também. Não há ciência que não passe pelos bancos escolares, qualificação para o mercado de trabalho que não se fortaleça ao longo da trajetória escolar e atitudes e valores democráticos que não sejam experimentados nos pátios e salas de aula. A defesa da escola é o único caminho para a efetivação dos direitos das crianças e de avanços tão necessários que a sociedade clama.

Crédito da imagem: Joa Souza / Shutterstock.com

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