A autorização dada em julho deste ano para a criação de uma Política Nacional Integrada para a Primeira Infância (PNIPI), a partir de decreto assinado pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, destacou a importância de um olhar mais atento para a proteção e a promoção dos direitos das crianças e suas famílias.

Contudo, segundo Beatriz Abuchaim, Gerente de Políticas Públicas da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV), ainda há um longo caminho a percorrer para que ela se torne uma realidade. A FMCSV é uma das instituições que assinam o relatório com recomendações para a construção da política nacional, que perpassa aspectos relacionados à educação, saúde, assistência social, proteção e justiça.

Especialmente no que diz respeito à educação, o relatório destaca a necessidade de fortalecer a implementação da BNCC na Educação Infantil, aspecto que, explica Beatriz, passa pela melhoria da qualidade nas diferentes redes.

Na entrevista a seguir, a Gerente de Políticas Públicas da FMCSV fala sobre as recomendações nesse sentido e aponta os desafios e futuro da Primeira Infância no Brasil. Confira!

 

  1. Com a publicação do decreto para a Política Nacional Integrada para a Primeira Infância, quais são os próximos passos?

Para que a Política Nacional Integrada para a Primeira Infância se torne realidade, há a necessidade, primeiro, da criação do comitê intersetorial como previsto no decreto.

A partir disso, a criação e implementação da PNIPI em um país tão diverso como o Brasil exige um olhar atento às necessidades específicas de cada região e público. A desconsideração da realidade local pode resultar em desigualdades e ineficiência na oferta de serviços. 

É crucial que a PNIPI seja construída a partir da escuta das demandas territoriais, permitindo a flexibilização de modelos e a oferta de uma “cesta de serviços” que possa ser customizada pelos municípios. Além disso, a capacitação de gestores e profissionais precisa ir além do aspecto técnico, promovendo a compreensão das diferentes realidades e o desenvolvimento de práticas sensíveis à diversidade territorial e racial. 

Há, ainda, uma camada adicional para essa garantia, que deve adotar políticas afirmativas para garantir o acesso e a qualidade dos serviços para as populações mais vulneráveis, reconhecendo que a dimensão racial impacta o acesso a direitos e perpetua desigualdades.

 

  1.  Nos últimos meses, a FMCSV integrou e atuou na relatoria do GT Primeira Infância, do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável. Desse trabalho, o GT elaborou um relatório com as diretrizes para a criação da Política Nacional. Quais são os principais destaques desse relatório?

O documento apresentado pede a articulação entre esferas municipal, estadual e federal para a priorização das crianças que estão em situações adversas a partir das múltiplas infâncias e dos diversos contextos familiares, territoriais e regionais – e o fortalecimentodepolíticas setoriais prioritárias, tais como saúde, assistência social, educação, proteção e justiça. 

A partir disso, o relatório proposto foi estruturado com três eixos complementares:  

  • Sistema de Informação Integrado da Primeira Infância, que consolidará e integrará dados dos setores e serviços.   
  • Serviços setoriais fortalecidos e integrados, para fortalecer e integrar as políticas de serviços básicos, inicialmente abrangendo as áreas de saúde, assistência social e educação, juntamente com iniciativas de proteção e justiça; direitos humanos e cultura.  
  • Comunicação com as famílias e cuidadores, para apoiar a jornada de atenção à Primeira Infância, o cuidado integral e a promoção do desenvolvimento infantil, a partir da Caderneta da Criança. 

 

  1. Especialmente no que diz respeito à educação, o relatório destaca a necessidade de fortalecer a implementação da BNCC na Educação Infantil. Que ações futuras podem ser desenvolvidas nesse sentido?

Quando falamos em fortalecer a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) da Educação Infantil estamos falando também em qualificar a Educação Infantil. Nesse sentido, é preciso fazer valer documentos como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, do Conselho Nacional de Educação, e os Parâmetros Nacionais de Qualidade da Educação Infantil, criados em 2006 pelo Ministério da Educação e que foram atualizados em 2024 por resolução do Conselho Nacional de Educação que criou as Diretrizes Operacionais de Qualidade e Equidade na Educação Infantil. 

O documento atualmente espera homologação do Ministro da Educação, mas é um importante guia para orientar redes e escolas sobre a qualidade da Educação Infantil. Com base nesses documentos, várias ações devem ser adotadas para melhorar a qualidade da Educação Infantil e garantir acesso para todos. Por exemplo:

  • Mapear as crianças de 4 e 5 anos de idade que ainda não estão frequentando a pré-escola, seguido da promoção de busca ativa a partir de protocolos intersetoriais.
  • Instituir mecanismo de financiamento complementar ao Fundeb para apoiar os municípios na garantia do atendimento em creches de qualidade para crianças em situação de maior vulnerabilidade, como no Programa Brasil Carinhoso;
  • Aperfeiçoar a formação inicial de professores e apoiar as redes na formação continuada voltada para o desenvolvimento infantil integral;
  • Aprimorar a avaliação na Educação Infantil dentro do Saeb, a partir de amplo debate, adaptando e testando modelos de mensuração da qualidade da Educação Infantil utilizados em outros países, bem como experiências já implementadas no Brasil. Divulgar essas informações por municípios para que, assim, as redes possam atuar na melhoria de seus indicadores;
  • Fortalecer o Programa Nacional de Alimentação Escolar;
  • Assegurar a criação de creches e pré-escolas com pátios naturalizados que favoreçam interações com a natureza, desenvolvimento motor e sensorial;
  • Ampliar e aprimorar a rede de creches rurais, situadas em regiões de alta vulnerabilidade social e econômica;
  • Acompanhar os dados de inclusão, permanência e aprendizagem das crianças com deficiência na pré-escola;
  • Garantir os cuidados necessários aos estudantes com deficiências de qualquer natureza; transtornos do espectro do autismo e altas habilidades, incluindo o diagnóstico e atendimento precoces e prioritários, como fundamentais ao desenvolvimento das competências básicas e para assegurar os direitos previstos em legislação para cada uma dessas crianças;
  • Incorporar a Educação Infantil, com suas especificidades, nos programas federais considerados estratégicos, tais como Criança Alfabetizada, Escola em Tempo Integral, PNLD, entre outros.

 

  1. O material do relatório destaca exemplos de experiências na Primeira Infância em diferentes estados para subsidiar a construção da Política Nacional. De modo geral, que inspirações elas oferecem para programas efetivos de atenção à Primeira Infância?

O relatório destaca uma série de experiências inspiradoras que oferecem insights valiosos para a construção de programas efetivos de atenção à Primeira Infância.

Programas como o PIM no Rio Grande do Sul, o Família Que Acolhe em Boa Vista e o Programa Criança Alagoana (CRIA), adotam uma abordagem intersetorial, reconhecendo que o desenvolvimento infantil é impactado por múltiplos fatores e requer a ação integrada de diferentes áreas do governo e da sociedade civil. Essa abordagem exige a criação de espaços de diálogo e articulação entre os diferentes atores, além da construção de fluxos de trabalho integrados e da elaboração de planos de ação conjunta.

As experiências bem-sucedidas também se destacam pela forte articulação entre o governo federal, estadual e municipal. Essa articulação é fundamental para garantir que as políticas cheguem aos seus beneficiários finais, especialmente em um país com a dimensão continental do Brasil. O Programa Criança Alagoana (CRIA), por exemplo, se destaca pela criação de mecanismos de apoio técnico e financeiro aos municípios, fortalecendo a capacidade local para a implementação da política

Já o Programa Mais Infância, no Ceará, por exemplo, se destaca pelo uso estratégico de dados para formular, implementar e monitorar suas iniciativas. A coleta sistemática de dados sobre a Primeira Infância, a criação de plataformas online de acesso à informação e a utilização desses dados para a tomada de decisão são apontadas como fatores importantes para o sucesso do programa.

Boa Vista, por outro lado, se destaca pela estratégia de investir na criação de parques e praças voltados à infância, garantindo o direito à cidade e ao lazer. A criação de espaços públicos de qualidade, seguros, acessíveis e estimulantes para as crianças é fundamental para o seu desenvolvimento integral. Esses espaços proporcionam oportunidades de socialização, brincadeira, exploração e contato com a natureza, elementos essenciais para o desenvolvimento infantil.

 

  1. Como a sociedade em geral poderá acompanhar o desenrolar dessas ações no médio e longo prazo?

O eixo proposto no relatório do GT, sobre comunicação com as famílias, é justamente para isso. As pessoas precisam entender os seus direitos. Precisam saber que têm direito a vacinação, pré-natal, vaga em creche, entre outros pontos.  

É urgente mostrar os direitos que elas têm, os deveres do Estado e como isso beneficia a criança, falar traz a famílias para dentro da agenda da Primeira Infância. Quando os cuidadores entendem que é necessário um trabalho intersetorial, conseguem cobrar.

 

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