Questão fundamental para a aprendizagem e a comunidade escolar, a saúde mental foi o tema do primeiro Papo da Base do ano, evento organizado pelo Movimento pela Base dedicado a debater a educação no Brasil. A escolha da temática baseou-se na urgência de oferecer ações para ajudar educadores e estudantes nesse aspecto, algo que vem sendo demonstrado por uma série de pesquisas e levantamentos. A Organização Mundial da Saúde, por exemplo, revela que 26% dos brasileiros já foram diagnosticados com ansiedade. E a escola não está imune – pelo contrário.

Conforme mostrado pelos convidados do Papo da Base em suas apresentações, a pandemia de COVID-19 agravou as questões de saúde mental para estudantes e também para professores. Uma pesquisa de 2022 realizada pela Associação Nova Escola em parceria com o Instituto Ame Sua Mente revelou, por exemplo, que o número de educadores que consideravam sua saúde mental “ruim” ou “muito ruim” subiu de 13,7% para 21,5% em apenas um ano.

Ao longo do evento, os participantes trouxeram mais dados e recomendações para redes de ensino e escolas visando fortalecê-las para enfrentar esses desafios nas salas de aula. Veja a seguir mais detalhes do encontro!

Violência nas escolas, emoções e saúde mental: qual é a relação?

A falta de cuidado com a saúde mental leva ao adoecimento, prejudica a aprendizagem e toda a experiência escolar, além de estar associada ao aumento dos casos de violência nas escolas. E reverter esses casos depende de uma aprendizagem mais significativa e que olhe para crianças e jovens em todas as suas dimensões: cognitiva, física, social, emocional e cultural. E isso só é possível quando a escola é um ambiente saudável e acolhedor.

Para endereçar essa temática e responder como criar na escola uma cultura de promoção da saúde mental, o primeiro painel de debate do Papo da Base contou com apresentações de Carol Campos, CEO do Vozes da Educação, palestrante e Mentora de Impacto Social e Educação Básica, e Alcione Marques, Pedagoga, especialista em Psicopedagogia e em Neurociência do Comportamento (PUCRS), com aprimoramento em Reabilitação Cognitiva, mestre em Ciências (UNIFESP) e atualmente diretora da NeuroConecte, onde desenvolve projetos multidisciplinares de educação socioemocional e saúde mental para escolas e organizações diversas.

A primeira apresentação, de Carol Campos, abordou a delicada situação dos ataques em escolas e como essas situações se relacionam com a violência e o trauma coletivo causado pela pandemia, impacto que foi detalhado no estudo Experiências Adversas na Infância, do Vozes da Educação. A publicação explica que a pandemia é considerada atualmente uma experiência adversa coletiva por ter impactado os sensos de segurança, estabilidade e criação de vínculo de crianças e jovens. Veja algumas falas de Carol nesse sentido:

A educação pós-pandemia gerou uma ruptura muito grande do que ela era para o que se tornou. […] Hoje, em nossas escolas, temos um monte de alunos e educadores que experienciaram traumas em suas vidas

“Nossas escolas hoje sofrem problemas de violência porque temos alunos, educadores e famílias que carregam seus traumas. E esses traumas estão brigando entre eles e desembocando dentro do sistema escolar.

“Educadores que vivenciaram violência física na escola quando eram alunos, de forma inconsciente hoje, podem apresentar comportamentos que não percebem, típicos de quem vivenciou um trauma. Há muito tempo a escola é um espaço de violência e tem sido violenta com a gente, educadores, e tem sido violenta com nossos alunos

Nesse sentido, Carol falou também sobre como os traumas afetam estudantes e professores, usando exemplos do cotidiano escolar e citando caminhos para promover uma aprendizagem segura para restaurar o clima escolar. Veja algumas orientações da pesquisadora sobre isso: 

 

Dando sequência ao primeiro painel, Alcione Marques destacou a relação entre as emoções e a saúde mental, mostrando como elas estão diretamente relacionadas ao desenvolvimento da comunidade escolar.

Emoções são sensores entre nós e as circunstâncias, afetando o modo como a gente percebe a realidade que vivemos, como nos sentimos, como nos comportamos e nos relacionamos.

Vivemos em um contexto complexo de pandemia, mudanças rápidas e transformações trazidas pela tecnologia que fazem com que a gente viva em um contexto de menos determinação. Nosso futuro é mais incerto, os caminhos que se abrirão a nossa frente são mais incertos, e isso aciona as emoções de luta e fuga, relacionadas à nossa defesa, como ansiedade, medo, raiva, que faz com que as nossas relações possam ficar mais difíceis se a gente não tiver estratégias para manejar as emoções.

Este contexto complexo nos impõem desafios que faz com que precisemos dessas habilidades bem desenvolvidas para dar conta dessa realidade. Hoje precisamos de ações intencionais para desenvolver as habilidades socioemocionais para que sejam aliadas, para que nos ajudem a lidar com as circunstâncias, e não sejam um entrave quando mal manejadas. […] E a ciência vem demonstrar que as emoções são um recurso valioso que podemos agregar às nossas ferramentas para lidar com o mundo

Em sua apresentação, Alcione mostrou ainda pesquisas sobre o impacto do desenvolvimento socioemocional dos professores e a necessidade de apoiá-los a compreender como as emoções se relacionam com a aprendizagem, influenciam o clima em aula e o ensino de conteúdos.

Qual é o papel dos pais e da escola na garantia da saúde mental de professores e estudantes?

No segundo painel do Papo da Base, as convidadas Cláudia Donegá, gestora de projetos do Instituto Ame Sua Mente, e Anna Penido, Diretora do Centro Lemann de Sobral, falaram sobre o papel da educação socioemocional na formação de estudantes e na formação de professores.

Dando início ao debate, Claúdia falou sobre iniciativas que incentivam a formação de professores e ajudam as escolas a endereçar o tema da saúde mental de maneira mais efetiva e pontuou quão estratégico pode ser esse trabalho.

Não queremos onerar o professor, não queremos transformar os educadores em psicólogos ou psiquiatras, nós queremos fundamentar com ciência situações seguras para que eles possam identificar, fazer manejo simples e encaminhar adequadamente os casos.

Conhecimento, formação de educadores e informação é o que vai dar força e possibilidade de lidar com esse tema de uma nova forma. Mas não podemos banalizar, e sim ter um olhar atento, cuidadoso, não para as doenças, mas um olhar de fato acolhedor para o outro. Ter esse olhar humanizado sobre as famílias, os alunos, sobre nós mesmos e sobre os nossos colegas já é terapêutico, pois evita a estigmatização.

Em sua fala, ela destacou como as ações de diálogo entre pares têm o poder de contribuir para que a escola seja um espaço de escuta, acolhimento e comunicação não violenta.

Para encerrar o segundo painel do Papo da Base, Anna Penido trouxe uma apresentação que destacou uma série de ações práticas de como a saúde mental pode ser trabalhada de maneira integrada ao planejamento escolar, partindo dos preceitos da BNCC.

Precisamos ensinar crianças, adolescentes e jovens a lidar com suas emoções, com sua saúde, com seu bem-estar, a lidar com a saúde e o bem-estar do outro, com as incertezas e volatilidades do mundo no qual a gente vive, a lidar com os grandes desafios que estão postos na nossa sociedade. O currículo precisa se atualizar.

E é por isso que a BNCC traz essa concepção de educação integral. O intelectual continua sendo absolutamente importante, mas para além do acadêmico, precisamos desenvolver competências sociais, emocionais, culturais, físicas, corporais. A gente precisa entender como a escola vai se capacitando para ser esse espaço de educação multidimensional, sem a dicotomia do que é educação de casa ou da escola.

Nesse sentido, Anna destacou as competências que mais se relacionam com os aspectos de cuidado da saúde mental e deu exemplos práticos de como desenvolvê-las nas atividades pedagógicas.

O Papo da Base contou ainda com a participação de Alice Ribeiro, diretora de Articulação e Advocacy e co-CEO do Movimento pela Base, e de Daniel Becker, médico pediatra, sanitarista, palestrante e escritor, que participou do evento com um vídeo no qual ajuda pais e educadores a identificar os sinais aos quais devem estar atentos quando se fala em saúde mental de crianças e jovens.

Saúde mental e emoções andam de mãos dadas com a aprendizagem. Assim como a gente quer garantir que as crianças e jovens desenvolvam todo seu potencial e tenham na escola a oportunidade de se desenvolver plenamente é preciso olhar para essas questões. O Movimento pela Base entende que a educação integral é direito de cada criança e jovem e que a escola é central para fomentar e materializar esse direito para todos. Uma das principais inovações da BNCC foi justamente trazer uma diretriz para que todos os estudantes em qualquer parte do Brasil possam se desenvolver integralmente, ou seja, nas dimensões cognitiva, social, emocional, física e cultural. […] Para isso, é preciso que, por um lado, contem com apoio para sua própria saúde mental e, por outro lado, contem com formações, materiais e apoio para que o trabalho com as competências gerais, que são o coração da BNCC, aconteça.

A gente vive uma crise reconhecida internacionalmente de saúde mental, e que no Brasil é bastante grave. Os registros de violência, transtorno mental, aumento de automutilação e suicídio, depressão, ansiedade, ataque de pânico crescem, e a escola é um lugar privilegiado para detectar e ajudar essas crianças. Muitas delas estão sofrendo uma série de situações opressivas há muito tempo, a pandemia veio a trazer isso para a superfície e tem a ver com muitas questões, por exemplo, o convívio com as famílias, que está precarizado.

Pesquisa exclusiva sobre escola e família

Para encerrar o Papo da Base, o encontro mostrou ao público os destaques de uma pesquisa inédita realizada pela Consultoria Adere a pedido do Movimento pela Base sobre como os gestores escolares dialogam com as famílias e os responsáveis pelos estudantes. 

Um dos principais destaques do levantamento, apresentado pela consultora em políticas públicas Giovanna Cardoso, mostra que a comunicação das escolas com pessoas responsáveis em relação ao conteúdo aprendido pelos estudantes, em muitos casos, foi considerada incipiente. Segundo a pesquisa, essa comunicação parece estar mais concentrada em outros aspectos da vida escolar dos estudantes, como questões comportamentais e mensagens gerais sobre as atividades escolares.

Além disso, de modo geral, foi observado pelos entrevistados que poderia haver maior aproximação entre escolas e responsáveis, com benefícios para os estudantes. Nesse sentido, os responsáveis entrevistados afirmam o desejo de estar mais presente no cotidiano escolar, apesar de dificuldades advindas de fatores como rotina intensa de trabalho e tempo de deslocamento.

Como resultados avaliados das entrevistas com membros de comunidades escolares, há um claro avanço no desempenho quando esse diálogo acontece, com maior engajamento e interesse por parte das famílias, além de apoio e fortalecimento de vínculos.

Uma maior aproximação entre escolas e pessoas responsáveis por estudantes pressupõe empatia da gestão escolar e quadro de professores sobre as dificuldades vivenciadas pelas famílias. A construção de uma relação harmônica e empática pressupõe, por sua vez, técnicas de comunicação física e verbal acolhedoras, e está diretamente relacionada ao cuidado com a saúde mental das famílias e das(os) estudantes.