Alunos e alunas com comportamentos inadequados, que não prestam atenção às aulas, sem interesse nos conteúdos, não tiram notas boas… Esses fatos não são novidade para a vasta maioria dos professores brasileiros nem para quem está no dia a dia da educação. Contudo, segundo Carol Campos, CEO do Vozes da Educação, palestrante e mentora de impacto social e educação básica, situações como essa representam atualmente a ponta de um iceberg que ficou mais explícito no pós-pandemia e que carrega questões mais profundas em relação à saúde mental da comunidade escolar.

Em sua palestra durante o Papo da Base, evento organizado pelo Movimento pela Base para debater temas urgentes educação, ela ponderou que, embora as pessoas não “aguentem mais” ouvir falar sobre pandemia, infelizmente seus efeitos na saúde mental dentro da escola ainda vão perdurar por anos, agravados por traumas que estão se tornando casos de violência no cotidiano das salas de aula.

“Nossos traumas influenciam e interferem no nosso comportamento e comprometem as nossas relações, podendo contribuir para a violência dentro do ambiente escolar.”

Ela defende que a instituição escolar tem um poder enorme para atenuar uma série desses fatores, que não podem ser esquecidos nem minimizados quando falamos de violência.

A violência é um fenômeno extremamente complexo e multifatorial, que envolve aspectos sociais, entre eles o esgarçamento da coesão social. Nós vivemos uma questão da cooptação dos nossos jovens pelo crime organizado, jovens que se veem sem perspectiva. Tem ainda um fenômeno mais recente, que vem preocupando quem estuda violência, que é a radicalização e o extremismo entre adolescentes e jovens, que têm estado por trás de uma série de ações violentas na escola. E precisamos lembrar ainda que a sociedade brasileira é uma sociedade violenta e que essa violência se manifesta também dentro da escola.

Este texto faz parte da cobertura do primeiro Papo de Base de 2024. Leia também:
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Mas o que isso tem a ver com nossa saúde mental?

De acordo com a segunda palestrante do Papo de Base, Alcione Marques, pedagoga, especialista em psicopedagogia e em neurociência do comportamento com aprimoramento em reabilitação cognitiva, mestre em ciências e atualmente diretora da NeuroConecte, o contexto complexo de pandemia somado às mudanças rápidas e transformações trazidas pela tecnologia faz com que a gente viva em um contexto incerto, no qual precisamos de estratégias para manejar as emoções.

Hoje precisamos de ações intencionais para desenvolver as habilidades socioemocionais para que elas sejam aliadas e nos ajudem a lidar com as circunstâncias, e não sejam um entrave quando mal manejadas. […] E a ciência vem demonstrar que as emoções são um recurso valioso que podemos agregar às nossas ferramentas para lidar com o mundo.

A especialista diz que “parece um pouco clichê falar que os educadores precisam se cuidar”, mas a verdade é que compreender as emoções é um caminho para atenuar os desafios cotidianos. “As emoções são sensores entre nós e as circunstâncias, afetando o modo como a gente percebe a realidade que vivemos, como nos sentimos e nos comportamos nas diversas circunstâncias, afetando diretamente como nos relacionamos e estamos no mundo”, aponta, e completa:

Não temos como dissociar nossa dimensão emocional da nossa saúde mental. Ela afeta todas as outras dimensões. As emoções nos acompanham desde que existimos como humanos, mas esse tema se tornou mais relevante nos últimos anos a ponto de ser considerado em vários espaços, incluindo a escola.

E são exatamente as estratégias para manejar emoções que podem evitar com que conflitos virem confrontos propícios para ações violentas. “É necessário que preparemos as novas gerações para que tenham esse recurso emocional a seu favor. Caso contrário, nós iremos adoecer como sociedade”, diz a especialista.

Saúde mental não é a ausência de transtorno. É ter habilidades para lidar com as circunstâncias da vida, tanto positivas quanto negativas, de alcançar bem-estar, e isso vai muito além de simplesmente não ter um transtorno mental.

E as emoções e a saúde mental do professor?

Ainda que o discurso sobre saúde mental esteja se disseminando, estamos distantes de ter a educação socioemocional totalmente difundida, especialmente entre os próprios professores e professoras. Pesquisa da Fundação Getúlio Vargas de 2022 mostrou, por exemplo, que apenas 30% dos cursos de pedagogia oferecem alguma formação no sentido de conhecer as emoções e desenvolver habilidades de autorregulação. “A maioria de nós educadores só aprendeu a lidar com as emoções ao longo da vida ou quando fizemos terapias, depois que éramos adultos”, pondera Alcione.

Ela ressalta que a realidade escolar agrava questões emocionais por fatores estruturais, deixando aos docentes a percepção de não ter recursos internos ou estruturais suficientes para lidar com esses desafios. “Essa condição emocional e mental do professor tem uma série de fatores adoecedores, ligados à própria conjuntura educacional e social. […] A desvalorização da carreira é uma delas, não só em relação à remuneração, mas em relação também ao prestígio que a categoria tem na sua comunidade e na sociedade de um modo geral”.

Papel de todos

Em sua fala no Papo de Base, Alcione citou estudos mostrando que professores são frequentemente responsabilizados pelos fracassos na educação e raramente reconhecidos por aquilo que fazem de positivo. “Esse desprestígio é algo que afeta enormemente e é um fator de adoecimento”.

Um dos caminhos, aponta, é repensar a formação docente para esse novo contexto educacional. “Professores que passaram por programas de desenvolvimento socioemocional tiveram uma melhora na sua eficácia, com um evidente aumento da qualidade do ensino e da aprendizagem pelo estudante”, destaca.

Esse caminho de desenvolvimento passa também pela valorização dos docentes por parte da gestão e da comunidade. “Nas últimas décadas, a saúde mental passou a ser considerada um tema que envolve diversas instâncias sociais e cada uma tem um determinado papel. A saúde, a assistência social, a psicologia… E a educação também. Esse papel ele sempre existiu, mas no passado nós não precisávamos saber lidar com tanta habilidade como precisamos agora”.

A criança que tem uma questão emocional ou de saúde mental não deixa de ser responsabilidade da escola e do professor no cotidiano escolar. Nós, professores, vamos ter que continuar dando conta daquele estudante, contribuindo para que ele possa lidar melhor com as suas questões. Por isso a escola é um fator importante de proteção, e nós temos o nosso papel de promoção de saúde mental, de identificar sinais e de fazer encaminhamentos quando necessário.